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Foto do escritorMonica Levy Andersen

"Perdemos o sono" na Veja Saúde

Atualizado: 8 de set. de 2020

Coronavírus, ansiedade a mil, overdose de telas e falta de rotina têm acabado em noites maldormidas. Como quebrar esse círculo vicioso que demole a saúde


Ao nascer, a Bela Adormecida foi alvo de uma maldição terrível. Uma fada invejosa disse que, quando fizesse 15 anos, a princesa sofreria um corte no dedo e, na sequência, dormiria sem interrupção durante o século seguinte. E assim foi: “Ela se espetou, caindo imediatamente num sono profundo [...] E então tudo começou a adormecer: os cavalos no estábulo, as pombas no telhado, os cães no pátio, as moscas nas paredes...”, escrevem os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, numa versão da história datada de 1812. A praga sobre o reino só se desfez graças ao beijo que um príncipe deu na garota. Bastou esse ato para que todos ao redor do castelo acordassem e, como dizem os contos, vivessem felizes para sempre.


Curiosamente, vivemos em um mundo que é exatamente o oposto ao da Bela Adormecida. Na vida real de 2020, ninguém está conseguindo pregar os olhos. A causa, porém, é outra: quem nos assombra é um vilão de verdade, mas microscópico. O coronavírus que brotou na China no final de 2019 provoca a maior crise de saúde pública das últimas décadas, com milhões de casos e centenas de milhares de mortes. E, entre o medo do imponderável e tantas mudanças impostas à sociedade, a pandemia fez nosso sono ir para o brejo. Não sou só eu nem você ou nossos conhecidos que notamos isso. A ciência já percebeu.


Mas sejamos honestos: nossas noites já não iam tão bem antes de a Covid-19 virar pesadelo global. As estatísticas mostravam que ao menos um terço da população da capital paulista, por exemplo, não dormia adequadamente desde alguns anos atrás. No entanto, a situação se acentuou e ganhou tons dramáticos a partir de março de 2020. É o que comprova um novo levantamento do Instituto do Sono, em São Paulo, que colheu informações de 1.738 participantes. Os resultados, divulgados em primeira mão por VEJA SAÚDE, revelam que 55,6% dos respondentes alegaram piora na qualidade do sono ao longo desses meses de quarentena (92% fizeram isolamento social por algum período).


“Quando perguntamos os motivos, as respostas comuns foram o fato de ficar mais tempo em casa, uso excessivo de telas de computadores ou celulares e as preocupações com toda a situação”, contextualiza a biomédica Monica Andersen, diretora do instituto e uma das coordenadoras do projeto.

Surpreendentemente, 8,9% dos participantes consideram que o descanso noturno melhorou depois que o coronavírus virou manchete. Entre as razões, destacam-se a rotina flexibilizada e a possibilidade de acordar um pouco mais tarde. Em toda regra há exceções.


Essa não é a única pesquisa a apontar tal tendência no país. A pedido da farmacêutica Takeda, o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) entrevistou 2 635 brasileiros entre os dias 16 e 30 de março. Utilizando o Índice de Pittsburgh, uma ferramenta validada cientificamente para ava - liar o descanso noturno, a conclusão foi que 65% dos participantes apresentavam uma qualidade de sono comprometida. O problema se agravava entre as mulheres: 71% delas não estavam conseguindo se recompor como gostariam. “Vale destacar que os dados foram colhidos em março, quando a pandemia estava começando a evoluir no país, e as pessoas eram contaminadas por uma sensação de medo”, observa o cardiologista Luciano Drager, vice-presidente da Associação Brasileira de Medicina do Sono.


As crianças parecem ser um grupo particular - mente afetado por esse caminhão de mudanças provocadas pela Covid-19. “Se compararmos os dados da população infantil, vemos que ocorreu um aumento muito grande nas alterações de sono”, relata a neurologista Magda Lahorgue Nunes, vice - diretora do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Numa pesquisa conduzida pela médica em 2017, cerca de 25% das crianças apresentavam dificuldades para adormecer. Essa porcentagem praticamente dobrou nesses meses de 2020. “A perda da rotina e dos compromissos diários parece ser o principal fator por trás disso”, destaca Magda.


Pelos próximos minutos, pedimos a você que fique atento (e acordado), caro leitor: nas páginas a seguir, conhecerá em detalhes os principais inimigos da tranquilidade noturna e como desarmá-los. Se nos lembrarmos de todos os males causados pela privação do sono (de depressão a infarto), ficaremos também mais conscientes da importância de zelar pelo momento de botar a cabeça no travesseiro e sonhar...

Desde 2012, a neurocientista Natália Mota, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, investiga e desenvolve maneiras de flagrar doenças psiquiátricas por meio das falas dos pacientes. Com o auxílio de programas de computador e da inteligência artificial, sua proposta é desenvolver um sistema capaz de analisar o discurso de um indivíduo e, por meio de certos padrões, determinar se ele sofre de algum transtorno ou não. Em setembro e outubro do ano passado, ela e sua equipe estavam montando um aplicativo que ajudasse a fazer esse diagnóstico por meio do celular. Para isso, pediram a voluntários saudáveis que gravassem um áudio contando os detalhes sobre sonhos que tiveram recentemente. Esses relatos auxiliariam a testar o dispositivo e serviriam de padrão para análises futuras.


Os passos seguintes da investigação estavam marcados para acontecer agora em 2020. Mas o coronavírus modificou totalmente o curso do projeto. Rápidos no gatilho, os pesquisadores tiveram uma ideia: por que não pedir aos mesmos voluntários da experiência anterior que enviassem uma nova descrição de seus sonhos durante a quarentena? Assim, seria possível realizar uma comparação entre os dois períodos e notar eventuais diferenças. “Na pandemia, os sonhos apresentavam maior proporção de palavras relacionadas a raiva e tristeza. Os conteúdos incluíam vivências relacionadas a contaminação e limpeza”, revela Natália, que também atua no Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco. Em outras palavras, antes nos sentíamos mal com pesadelos em que estávamos pelados numa reunião ou numa festa. Agora, a agonia coletiva é sair à rua sem máscara no rosto e encontrar um monte de gente aglomerada pelo caminho. Sinais dos tempos.


De acordo com Natália, tudo indica que o ato de dormir funciona como uma etapa de organização de todas as experiências que tivemos quando acordados. “Assim como na digestão o intestino absorve os nutrientes e descarta aquilo que não tem serventia, os sonhos são um aparato para o processamento de memórias, em que são retidas as informações e aprendizados importantes para nossa sobrevivência, enquanto os traumas e medos acabam atenuados”, explica a cientista. Vivências oníricas mais intensas ou agita - das, então, ficam mais frequentes diante de catástrofes e situações atípicas como esta que estamos passando. Na prática, elas podem ser uma ótima pista de como anda a saúde mental e como o cérebro está lidando com esse rebuliço — caso os pesadelos estejam incomodando demais, aliás, talvez seja hora de procurar um médico ou psicólogo.

Se as pesquisas mais recentes sinalizam que existe algo errado com o sono (e os sonhos) da população brasileira, é inevitável apurar quais os principais obstáculos para um bom encontro com o colchão. A The Bakery, uma empresa de inovação corporativa, tentou captar justamente isso ao entrevistar mais de 780 pessoas espalhadas pelo país. Eles descobriram que os principais temores dos participantes são perder alguém próximo (69%), a situação econômica do país (43%), ficar doente (38%) e sofrer um desequilíbrio mental (26%). Outros dados que chamam a atenção: desde que o número de casos de Covid-19 começou a aumentar no Brasil, 67% dizem estar trabalhando de casa e 42% admitem que estão se sentindo mais ansiosos desde então. “Começamos a perceber que essa tendência de adaptação forçada à transformação digital e ao home office fez com que muitos funcionários pensassem que deveriam estar disponíveis 100% do tempo, o que, por sua vez, gerou um monte de conflitos”, reflete Felipe Novaes, diretor-executivo da The Bakery.


Adicione a esse expediente as demandas da casa (fazer faxina, preparar o almoço, lavar a roupa...), as exigências escolares das crianças e a frustração com os planos adiados ou cancelados. Já sabe para quem sobra no final do dia? “O estresse, a angústia e o medo têm um efeito direto sobre o sono, que pode se tornar mais fragmentado, cheio de despertares durante a madrugada e, por consequência, com uma qualidade inferior”, explica o neurocientista Fernando Louzada, da Universidade Federal do Paraná. Do ponto de vista fisiológico, situações tensas fazem nosso organismo produzir quantidades maiores de cortisol, aquele hormônio que nos desperta e nos mantém prontos para a ação, mesmo quando o objetivo é justamente o contrário: dormir e descansar.


Não podemos ignorar também a situação política e econômica do Brasil, que influencia esse pano - rama e aprofunda as crises pessoais e sociais. Uma pesquisa conduzida pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em parceria com outras três instituições fez uma série de comparações das mudanças de estilo de vida que aconteceram no Brasil e na Espanha durante a pandemia. Por aqui, o padrão de sono se alterou em 50% dos sujeitos avaliados. No país europeu, esse número ficou na casa dos 38%. “É preciso levar em conta que o apoio social está mais consolidado por lá, enquanto o brasileiro permanece numa posição de maior vulnerabilidade”, interpreta o psiquiatra Flávio Kapczinski, professor da UFRGS e um dos responsáveis pelo mapeamento. A rigor, qualquer perrengue mexe com as nossas noites.

Antes mesmo de a Covid-19 se espalhar pelos continentes, o tempo que passamos na internet já despertava preocupação dos médicos. De acordo com dados compilados agora em 2020 pela Hoot - suite e pela We Are Social, duas plataformas de gerenciamento de redes sociais, o brasileiro navega em sites e aplicativos online por nove horas e 29 minutos todo santo dia. Estamos na segunda posição no ranking mundial de conectividade — o primeiro lugar pertence às Filipinas. Em comparação com anos anteriores, essa média brasileira se elevou. Muito disso se deve ao fato de que a maioria dos contatos depende de Zoom, Skype, Google Meet e outros serviços de videochamada. Sem exageros, quase metade de nossas 24 horas é vivida na frente de telas do computador, do celular, da televisão ou do tablet.


E qual o perigo disso quando falamos de sono? Pra começo de conversa, todos esses dispositivos emitem uma quantidade de luz, que entra pela retina e prejudica a produção da melatonina — e o “hormônio do sono” precisa de ambientes escuros para ser fabricado. Em segundo lugar, os meios digitais têm a capacidade de estimular nossa mente, que permanece ligada quando deveria apagar.


“A internet nos dá respostas com uma rapidez impressionante, o que gera a liberação de neurotransmissores que excitam o cérebro”, diz Monica Andersen. Para não perder o sono, recomenda-se desligar tudo que é aparelho de uma a duas horas antes de dormir e dar preferência a atividades relaxantes no fim do dia.

O professor de educação física Marco Túlio de Mello, da Universidade Federal de Minas Gerais, observa outro efeito colateral que o coronavírus provoca quando analisamos o momento do repouso. “Ao ficarmos mais em casa e sem atividade física, o risco de engordar aumenta”, conta. Esse ganho de peso, por sua vez, pode agravar ou propiciar o surgimento de distúrbios do sono, como a própria apneia. “É preciso ficar atento para essa piora em quadros preexistentes e já diagnosticados”, alerta o especialista.


A situação, aliás, é preocupante para indivíduos com apneia que fazem algum tratamento: em vários locais, há indícios de interrupção nos atendimentos durante o primeiro semestre de 2020. Uma pesquisa realizada por médicos suecos e irlandeses publicada no European Respiratory Journal calcula que 80% dos serviços de saúde que acompanhavam pacientes com o problema fecharam as portas ou reduziram sua disponibilidade para consultas no período. Pelo menos, hoje em dia, boa parte dos CPAPs, os dispositivos que são a principal terapia contra a apneia, têm conexão com a internet. Isso facilita o acompanhamento a distância pelos profissionais de saúde.

Diante de tantas aflições, muitas delas acima da nossa capacidade individual de resolução, o que podemos fazer para contar carneirinhos e cair no sono numa boa? Todos os experts entrevistados por VEJA SAÚDE foram unânimes em uma recomendação: estabelecer uma rotina. Não se prenda àquela história de que todo mundo tem de dormir oito horas por dia. Cada pessoa possui características próprias e deve entendê-las e respeitá-las — uns necessitam ficar na cama por dez horas, outros se sentem muito bem, obrigado, após descansarem por cinco.


Essa agenda adaptada à nova realidade precisa levar em conta também o seu cronotipo: você é daqueles que acordam logo cedo, cheios de ânimo e energia para trabalhar? Ou costuma render mais para o fim da tarde? Reconhecer essas particularidades é um dos passos mais importantes na busca pelo bem-estar. “Para quem está em quarentena, sugiro criar um diário do sono que registre, durante duas ou três semanas, as horas em que dormiu e acordou e como se sentiu em relação a isso”, indica o neurocientista Luiz Menna-Barreto, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Desse modo, é possível notar padrões e ajustar os horários respeitando o seu ritmo.


Nessa linha, a Fundação Nacional do Sono dos Estados Unidos produziu uma diretriz com orientações básicas para melhorar a qualidade do repouso durante a pandemia. Entre alguns dos pontos mais interessantes do documento, os autores destacam a necessidade de ter contato com a luz do sol para regular os hormônios melatonina e cortisol e restabelecer os ritmos do dia a dia. Outra questão crucial que muitas vezes nem levamos em conta: cultivar a gentileza e a conexão com as pessoas. “Apesar de todas as notícias ruins que você receber, tente encontrar histórias positivas e de esperança [...] A bondade e o contato com outros reduzem o estres - se e seus efeitos negativos sobre o humor e o ato de dormir”, defende o artigo.


Mas, afinal, como saber que estou descansando o suficiente? A resposta pode ser mais simples do que se imagina. “Você percebe que o sono é satisfatório quando passa o dia sem cansaço ou vontade de tirar um cochilo”, resume a neurologista Dalva Poyares, da Universidade Federal de São Paulo. Quem frequentemente desperta, faz barulhos com o nariz e a boca, vivencia sonhos agitados ou pesadelos, se debate ou fala pela madrugada deveria procurar a avaliação de um profissional de saúde. É óbvio que ninguém precisa dormir feito a Bela Adormecida. Mas todos temos direito a buscar noites tranquilas e restauradoras — pelo bem do corpo, pelo bem da mente.


Veja a matéria completa de André Biernath ao lado!

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